quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os Acrobatas

por Barbara Biscaro, preparadora vocal



Um projeto com uma perspectiva de pesquisa como O Espaço em Aberto é um vasto campo para a experimentação, no qual tudo está por ser feito: os pontos de partida foram delineados, apontados em conversas, reflexões e sobretudo, fundados nos desejos pessoais de cada artista envolvido no projeto. Cada um de nós pôde projetar sobre a tela em branco (que o outro se tornou) seu universo particular, suas dúvidas e instigações poéticas. E a partir dessa primeira etapa do processo, foi possível tocar uma dimensão desconhecida, e tornar o terreno propício para a criação: cada artista doando-se a seu modo, invadindo as fronteiras do corpo do outro, construindo um terceiro lugar onde se constituiriam as primeiras pistas para a edificação de um projeto tão vazio e tão cheio.

O aprendizado da técnica vocal e a exploração criativa dos recursos particulares de cada ator na construção da fala cênica às vezes parecem duas dimensões quase opostas: de um lado o rigor da técnica, que proíbe, tolhe movimentos, tem certos e errados definidos; o ator se depara com a impaciência, a impotência, mas também com os pequenos presentes e descobertas que os exercícios propiciam. Do outro lado há a liberdade incômoda da livre exploração da voz, na qual o ator muitas vezes se sente perdido diante de tantas possibilidades, tão livre que é dominado pelo medo, invadido por uma racionalidade que precisa ser deixada de lado para que o corpo possa propor novos caminhos de colocação da voz, proporcionando timbres e sonoridades muitas vezes desconhecidas, muitas vezes mais do que conhecidas (todos nós temos nossos repertórios, bóias para nos apoiarmos em águas revoltas).

O reconhecimento do uso da voz como a coordenação de diversos movimentos corporais sutis e manipuláveis me parece um modo de sentir a concretude da produção do som através do corpo como um todo. Se voz é corpo, o som é feito de ar, costelas, diafragma, garganta, língua, ossos, lábios. A produção de um som vocal pleno implica em risco, em lançar-se na completa escuridão. Não existe um som correto e um som incorreto: cada pessoa, na individualidade do seu corpo, no estado presente das suas emoções e sensações, produz sons muito particulares. Dentro do corpo é que os estímulos dados pela técnica encontram o fluxo incessante da exploração cênica, e estas dimensões anulam-se, discordam, complementam-se, geram materiais. O risco iminente gera uma renovação dos caminhos que o corpo executa para chegar em estados diversos. Muitas vezes, na oficina, eu me referi ao canto como uma acrobacia de difícil execução. Se o acrobata lançar-se no ar cheio de dúvida, se ele não preparar todo o corpo para o fluxo veloz e coerente do qual o movimento acrobático é feito, as suas chances de falhar ou se machucar são grandes. O mesmo acontece com o cantor ou o ator: a voz é uma acrobacia sonora, que depende de atributos como decisão, preparação para a queda iminente, liberação do fluxo sonoro na confiança que o corpo irá encontrar naturalmente os caminhos da execução do som.

O meu contato com o projeto e com as pessoas que integraram o oficina surgiu de uma premissa pessoalmente importante: integrar pesquisas, abrir espaços de convivência entre artistas que têm uma perspectiva exploratória. Conduzir uma oficina, compartilhando meus procedimentos técnicos e minhas experimentações como atriz e cantora com outros artistas abriu um importante espaço de troca. Expor o corpo e a voz, entre desconhecidos é uma tarefa difícil; perceber e guiar cada pessoa, cada qual com uma voz distinta, cada indivíduo pleno de sentimentos e desejos individuais, é uma função que exige sensibilidade e ao mesmo tempo rigidez...por isso, em nosso processo, foi necessário ouvir cada um com uma atenção absoluta: não respeitar a individualidade é muitas vezes impedir o crescimento de uma pessoa.

Na oficina, não trabalhamos com a palavra enquanto significado verbal, mas, utilizamos a palavra, com suas vogais e consoantes, como um material sonoro a ser engolido e regurgitado pelo ator, a ser manipulado, invertido, subvertido. A palavra era um mote para a descoberta de sonoridades, timbres e efeitos que ampliavam o próprio significado literal da palavra. Não importava ainda o quê dizer, mas como dizer. Foi necessário abrir espaços entre as letras de uma palavra, entre as palavras de uma frase, permitindo que novos significados surgissem na ampliação desses espaços sonoros.

O espaço em aberto deste projeto engloba todos os espaços existentes em um processo de criação teatral: além da busca da relação entre o corpo-voz do ator e o espaço cênico, há o espaço que constitui o mundo interior do ator, que cria as conexões entre volição e ação, entre impulso e movimento corpóreo-vocal. Há também um espaço a ser criado pela técnica vocal: é necessário abrir espaços dentro do corpo, libertar músculos e articulações para que a voz posssa ser emitida, fazer o corpo encher-se e esvaziar-se constantemente buscando a manutenção de um espaço interno que dê respaldo ao canto, à fala, ao som. Há também que se abrir espaços mentais, permitir-se afundar em um caos aparente, lidar com a abertura de tantas possibilidades: um grupo que se lança em um projeto com essa perspectiva corre os riscos necessários para uma renovação de sua linguagem cênica, para a descoberta de novas potencialidades poéticas em seu cerne. A tênue linha que separa o vazio do cheio é a corda na qual atores, diretor e outros artistas envolvidos caminham, completamente abertos em seus próprios espaços pessoais.


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