domingo, 16 de dezembro de 2007

Um abismo é um espaço em aberto

por Daniel Olivetto, diretor



Ao lidar com um tipo de processo cujo foco é o trabalho do ator, a postura do diretor e as formas de realização de seu trabalho consequentemente se configuram de outra maneira. Neste projeto, como em outros processos em que a autoria de ator é algo central - porque se está pesquisando algo que se revela por meio dele -, o trabalho do diretor começa com menos certezas do que em outros procedimentos. Tenho de antemão a vontade de não ser um mero organizador do que os atores descobrem, embora não saiba bem como se dirige num projeto que parte de um vazio temático como este. Muitas vezes vejo trabalhos em que a autoria na atuação é sacralizada em demasia, por meio de processos criativos que visam a revelação e descoberta pessoal do ator. Quando falo em sacralização me refiro aquele desejo do diretor de respeitar excessivamente o que o ator descobriu, hesitando em podar elementos, quase como quem respeita cada vírgula e pausa que um autor clássico propõe num texto. Assim, a figura do diretor “textocêntrico”, como é de praxe criticar, se reverte à figura de um diretor “atorcêntrico” (com o perdão da expressão não muito bonita). Aí me pergunto: qual é a graça de dirigir um espetáculo se o foco é organizar o trabalho de pesquisa de um ou mais atores? Já está posto, portanto, desde o início o que eu não queria fazer. Não ser “textocêntrico”, nem “atorcêntrico”. Entre um e outro há um grande universo aberto a outras possibilidades, mesmo que já bastante exploradas no teatro.

Nos outros espetáculos que dirigi na companhia (Noite Adentro, em 2001 e Hagënbeck Ltda, em 2005) não havia uma concepção inicial de como encenar o que estávamos montando, ainda que partíssemos de obras literárias que, em especial no segundo caso, propunham algum rumo mais desenhado. Nestes processos, buscávamos explorar a leitura que o ator propunha cenicamente para a dramaturgia que estava nascendo, e a concepção do espetáculo se gerava ao longo de um diálogo de leituras distintas sobre a criação, chocando pontos de vista de ator e diretor, e concebendo a encenação a partir do que ia se estabelecendo como texto. Neste novo projeto, não sabemos nada sobre o texto, portanto, a idéia de conceber uma encenação é algo utópico.

O que pude conceber como diretor, a partir das discussões que vínhamos tento sobre o que montar, foi um possível trajeto de pesquisa. Assim, o projeto O Espaço em Aberto começa pra mim um pouco antes do que começou para o restante do grupo. No final do ano de 2006, época em que nos debruçávamos sobre os projetos do ano seguinte comecei a escrever uma proposta de pesquisa para espaços alternativos, ou espaços não-teatrais (embora nenhum destes nomes seja muito adequado ao que queríamos explorar). Então, o que parecia ser apenas uma escrita de projeto me reclamava a projeção de um trajeto de estudo que precisava ser fundamentado no que se costuma chamar de “justificativa do projeto”. Começo meu processo criativo, por incrível que pareça, redigindo um documento.

Já tínhamos convidado Marisa Naspolini para fazer a preparação corporal, e também Barbara Biscaro pra fazer a preparação vocal, além de Eliane Lisbôa, que a gente já “namorava” há algum tempo pra vir escrever algo com o grupo.

Marisa nos indicou um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que havia sido orientado por ela um ano antes. O trabalho escrito por Marina Monteiro, então aluna de graduação CEART/UDESC, tratava das relações entre o ator e o espaço cênico, considerando o ator um gerador de sentidos que se traduzem espacialmente através de seu corpo e compreendendo o espaço como um ambiente de significados ativos, um elemento que dialoga com o ator e propõe elementos simbólicos para a criação. Neste primeiro momento de organização do projeto, tentando fundamentar uma proposta de pesquisa, alguns novos elementos surgem no encontro com o TCC de Marina, a pesquisa de uma atriz com inquietações bastante próximas do que discutíamos no grupo, e que revela achados importantes para nortear o trabalho que começava a nascer no papel.

Alguns meses depois, equipe reunida, conversas pra discutir possibilidades, anseios, idéias sobre este espaço em suspensão, começamos o trabalho. Basicamente, tínhamos inquietações pessoais que apontavam temas individuais, como por exemplo: as relações com a memória familiar e cultural; a sensação de impotência de um sujeito em relação ao seu entorno; e o desejo pessoal de um sujeito que não se materializa no outro sujeito. Como não tínhamos nenhum texto que nos tivesse atraído, a tentativa inicial era aliar os temas particulares para perceber algum aspecto comum, e assim desenhar um mote pro trabalho poético. A única idéia que nos parecia comum como possibilidade de tema para estas relações ator-espaço, era a idéia de como o mundo interior (sujeito) dialoga com o mundo exterior (o ambiente), ou seja, como o microcosmo se insere no macrocosmo. Esta primeira metáfora clareava a idéia de como aliar o eixo técnico do projeto (ator/espaço) a um eixo temático (microcosmo/macrocosmo) gerando um mote pra começar as oficinas do Espaço em Aberto.

Programamos duas oficinas com Marisa e Barbara que tinham como objetivo vivenciar os primeiros elementos corpóreo-vocais ao redor desta metáfora microcosmo/macrocosmo. Em meio a este processo conseguimos trazer também Narciso Telles, professor da Universidade Federal de Uberlândia, que tem trabalhado sobre os Viewpoints de Anne Bogart, o que nos interessava também como elemento de pesquisa espacial. As oficinas foram abertas a atores da comunidade artística local, o que foi particularmente importante para o nosso trabalho, pois pudemos exercitar uma troca centrada em diferenças concretas. Pudemos perceber como atores de distintos contextos e referências técnicas problematizam as questões pesquisadas e como propõem resoluções distintas das nossas.

Em paralelo às três oficinas começamos a juntar fragmentos, temas, imagens a partir das percepções de cada um: Jô, Marcelo e Sandra (os atores), Eliane, que também participou como atriz nas oficinas, e eu, que atuei em parte do trabalho das oficinas. Ao fim do trabalho, tínhamos seqüências caóticas de materiais de todo o tipo que se puder imaginar. E o espaço estava aberto, como um abismo, cheio de imagens que pareciam inarticuláveis.

O trabalho que estamos desenvolvendo neste momento diz respeito ao enfrentamento dos temas que cada ator propõe, e como cada um alia os seus temas às suas inquietações técnicas. Uma vez que o mote técnico do projeto diz respeito ao ator em relação ao espaço, e o mote temático gira em torno da metáfora microcosmo/macrocosmo, os atores aprofundam a pesquisa em busca de um mote temático e de um mote técnico particulares. A idéia aqui é estimular a autonomia dos atores em relação ao seu trabalho como pesquisadores, prática que começa a se definir melhor na companhia a partir deste projeto.

Meu trabalho neste momento não se centra numa determinada concepção, uma vez que somente agora os eixos particulares dos atores estão melhor definidos, e a partir daqui essas linhas se entrelaçam, gerando um começo de texto a ser encenado. O trabalho que desenvolvo neste momento é o de perceber como estes focos começam a se relacionar, e de provocar o aprofundamento do trabalho individual dos atores, intervindo pra que os materiais de suas criações sejam postos em dúvida, sejam catapultados. Neste ponto do processo, a direção tem sido um exercício curioso (e às vezes neurótico) por um olhar mais afinado sobre o trabalho do ator.
Trata-se de um passo rumo a este equilíbrio entre textocentrismo e atorcentrismo que no início deste texto tomava como objetivo. A partir daqui Eliane começa a esboçar um texto. A partir daqui eu posso começar a definir alguns rumos de encenação. No entanto, o momento presente, em que os vejo pesquisar e criar, é um momento que alerta para que este olhar não se perca quando as escolhas do diretor começam a ser feitas. O que fica de mais forte neste trajeto até aqui é o aprofundamento dessa busca por saber como provocar o ator. Um exercício de olhar pros abismos de cada um. Olhar pros espaços que cada um resolveu abrir. E um exercício de agir: de pé, em frente a um ator, lhe fazendo perguntas, lhe tocando, ou mesmo sentado numa cadeira tentando entender como funcionamos no meio do abismo.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os Acrobatas

por Barbara Biscaro, preparadora vocal



Um projeto com uma perspectiva de pesquisa como O Espaço em Aberto é um vasto campo para a experimentação, no qual tudo está por ser feito: os pontos de partida foram delineados, apontados em conversas, reflexões e sobretudo, fundados nos desejos pessoais de cada artista envolvido no projeto. Cada um de nós pôde projetar sobre a tela em branco (que o outro se tornou) seu universo particular, suas dúvidas e instigações poéticas. E a partir dessa primeira etapa do processo, foi possível tocar uma dimensão desconhecida, e tornar o terreno propício para a criação: cada artista doando-se a seu modo, invadindo as fronteiras do corpo do outro, construindo um terceiro lugar onde se constituiriam as primeiras pistas para a edificação de um projeto tão vazio e tão cheio.

O aprendizado da técnica vocal e a exploração criativa dos recursos particulares de cada ator na construção da fala cênica às vezes parecem duas dimensões quase opostas: de um lado o rigor da técnica, que proíbe, tolhe movimentos, tem certos e errados definidos; o ator se depara com a impaciência, a impotência, mas também com os pequenos presentes e descobertas que os exercícios propiciam. Do outro lado há a liberdade incômoda da livre exploração da voz, na qual o ator muitas vezes se sente perdido diante de tantas possibilidades, tão livre que é dominado pelo medo, invadido por uma racionalidade que precisa ser deixada de lado para que o corpo possa propor novos caminhos de colocação da voz, proporcionando timbres e sonoridades muitas vezes desconhecidas, muitas vezes mais do que conhecidas (todos nós temos nossos repertórios, bóias para nos apoiarmos em águas revoltas).

O reconhecimento do uso da voz como a coordenação de diversos movimentos corporais sutis e manipuláveis me parece um modo de sentir a concretude da produção do som através do corpo como um todo. Se voz é corpo, o som é feito de ar, costelas, diafragma, garganta, língua, ossos, lábios. A produção de um som vocal pleno implica em risco, em lançar-se na completa escuridão. Não existe um som correto e um som incorreto: cada pessoa, na individualidade do seu corpo, no estado presente das suas emoções e sensações, produz sons muito particulares. Dentro do corpo é que os estímulos dados pela técnica encontram o fluxo incessante da exploração cênica, e estas dimensões anulam-se, discordam, complementam-se, geram materiais. O risco iminente gera uma renovação dos caminhos que o corpo executa para chegar em estados diversos. Muitas vezes, na oficina, eu me referi ao canto como uma acrobacia de difícil execução. Se o acrobata lançar-se no ar cheio de dúvida, se ele não preparar todo o corpo para o fluxo veloz e coerente do qual o movimento acrobático é feito, as suas chances de falhar ou se machucar são grandes. O mesmo acontece com o cantor ou o ator: a voz é uma acrobacia sonora, que depende de atributos como decisão, preparação para a queda iminente, liberação do fluxo sonoro na confiança que o corpo irá encontrar naturalmente os caminhos da execução do som.

O meu contato com o projeto e com as pessoas que integraram o oficina surgiu de uma premissa pessoalmente importante: integrar pesquisas, abrir espaços de convivência entre artistas que têm uma perspectiva exploratória. Conduzir uma oficina, compartilhando meus procedimentos técnicos e minhas experimentações como atriz e cantora com outros artistas abriu um importante espaço de troca. Expor o corpo e a voz, entre desconhecidos é uma tarefa difícil; perceber e guiar cada pessoa, cada qual com uma voz distinta, cada indivíduo pleno de sentimentos e desejos individuais, é uma função que exige sensibilidade e ao mesmo tempo rigidez...por isso, em nosso processo, foi necessário ouvir cada um com uma atenção absoluta: não respeitar a individualidade é muitas vezes impedir o crescimento de uma pessoa.

Na oficina, não trabalhamos com a palavra enquanto significado verbal, mas, utilizamos a palavra, com suas vogais e consoantes, como um material sonoro a ser engolido e regurgitado pelo ator, a ser manipulado, invertido, subvertido. A palavra era um mote para a descoberta de sonoridades, timbres e efeitos que ampliavam o próprio significado literal da palavra. Não importava ainda o quê dizer, mas como dizer. Foi necessário abrir espaços entre as letras de uma palavra, entre as palavras de uma frase, permitindo que novos significados surgissem na ampliação desses espaços sonoros.

O espaço em aberto deste projeto engloba todos os espaços existentes em um processo de criação teatral: além da busca da relação entre o corpo-voz do ator e o espaço cênico, há o espaço que constitui o mundo interior do ator, que cria as conexões entre volição e ação, entre impulso e movimento corpóreo-vocal. Há também um espaço a ser criado pela técnica vocal: é necessário abrir espaços dentro do corpo, libertar músculos e articulações para que a voz posssa ser emitida, fazer o corpo encher-se e esvaziar-se constantemente buscando a manutenção de um espaço interno que dê respaldo ao canto, à fala, ao som. Há também que se abrir espaços mentais, permitir-se afundar em um caos aparente, lidar com a abertura de tantas possibilidades: um grupo que se lança em um projeto com essa perspectiva corre os riscos necessários para uma renovação de sua linguagem cênica, para a descoberta de novas potencialidades poéticas em seu cerne. A tênue linha que separa o vazio do cheio é a corda na qual atores, diretor e outros artistas envolvidos caminham, completamente abertos em seus próprios espaços pessoais.